terça-feira, 31 de março de 2009

Manguebeat, a História que se confunde com Poesia.

JC - Caderno C
Publicado em 30.03.2009

José Teles
teles@jc.com.br

Link: http://jc3.uol.com.br/jornal/2009/03/30/not_324665.php

Como o guitarrista Lúcio Maia afirmou na matéria sobre a gravação do disco Da lama ao caos (publicada ontem), Chico Science & Nação Zumbi nunca se arvoraram a líder de movimento algum, apenas saiu na frente, gravou primeiro. O trabalho dos mangueboys foi o desenvolvimento de um processo. As ideias de várias pessoas que se conheceram, não raro por acaso, e comungavam da mesma vontade de mudar a face cultural do Recife, em particular, e de Pernambuco em geral.

O sergipano Hélder Aragão, por exemplo, veio para o Recife em 1984, com 18 anos. Não conhecia ninguém na cidade: "Escolhi o Recife porque era a metrópolis da região. Uns dois dias depois que cheguei, ali na Mesbla, que ficava cheio de gente na calçada, cruzei com uma menina bem bonita comprando o disco Combat rock, do Clash. Conversei com ela, que era amiga de Fred e de Renato L, que um dia foi na minha casa. Ao olhar meus discos, viu o primeiro o do Clash. O disco tinha sido dele, tava assinado dentro da capa. Um carioca que ele conhecia, pediu uns discos emprestados e vendeu. Fred já tinha a Mundo Livre, e eu passei a ser meio que o designer da turma. Bolava cartazes, panfletos".

Helder, ou DJ Dolores, fez parte da inseparável turma que se reunia em apartamentos na rua da Aurora, ou no bar Cantinho das Graças, da qual faziam parte, entre outros, Renato L, H.D. Mabuse, Xico Sá, Fred Zeroquatro, Jorge du Peixe. Para DJ Dolores, o embrião do manguebeat está nos anos 80, quando houve uma leva de DJs fazendo festas na cidade. Muitos futuros mangueboys foram DJs: "Antes destas festas, o que se tinha pra fazer era assistir a filmes de Fassbinder, Visconti..." As festas aconteciam em geral no Bairro do Recife, ainda repleto de cabarés e prostitutas: "O pessoal discotecava bastante no Adílias'place: "A mulher que tomava conta do lugar fazia a gente pagar pelos quartinhos, porque a freguesia das meninas caía”, continua Dolores.

Foi numa destas festas, no Atitude Noturna, que a uma estudante de publicidade chamada Maria Duda aproximou-se de Chico Science: "Era uma casa que funcionava ali perto da Praça Chora Menino. O DJ era um gringo, acho que austríaco. Quem ficava na portaria era um cara totalmente tatuado. Conheci Chico porque a gente tinha uma amiga em comum, Ângela", conta Duda, que por algum tempo foi chamada de "Musa do manguebeat". Ela namorou pouco mais de dois anos com Science, mas eram vistos sempre juntos, inclusive nas primeiras turnês da banda: "Eu era a única namorada que viajava com eles, e acho que isto causava um certo incômodo, porque eu dava opiniões. Os caras eram muito inexperientes, eu olhava os contratos e dizia o que achava", conta Duda, atualmente na curadoria do memorial Chico Science, que deve ser inaugurado em abril, no Pátio de São Pedro, coincidentemente com um dos personagens da história, Renato L, como secretário de Cultura da manguetown, algo que não se sonhava nem nas mais viajadas elucubrações dos mangueboys.

Segundo Jujuba, primeiro empresário do Chico Science & Nação Zumbi, que hoje trabalha em produção de vídeo em Brasília, o afastamento dele do grupo começou com um desentendimento com Chico Science,que teve Duda como pivô: "A banda ia fazer um show em Salvador e só mandaram passagens para o grupo e o empresário. Porém Chico e Duda eram muito apegados, e ele queria que ela fosse com a banda, e eu de ônibus. Discutimos e aí não tive mais clima para continuar trabalhando com a banda". Duda diz que ouviu falar do caso: "Mas se aconteceu mesmo, nunca chegou a mim. Não sei se procede".

Durante a gravação de Da lama ao caos, ela esteve algumas vezes no Nas Nuvens: "Mas não acompanhei a gravação inteira. Naquele tempo eu ainda estudava na UFPE e não podia ficar muito tempo viajando". De Chico Science, Duda tem mais do que recordações. Ele escreveu muito para ela, poemas, em sua maioria: "Estão numa caixinha, São coisas muito pessoais, acho que nunca vou querer publicar", diz Duda.

Para a maioria dos que participaram da movimentação da época, o manguebeat foi, parafraseando o samba de Paulinho da Viola, um rio que passou em suas vidas, e eles se deixaram levar. Roger de Renor havia aberto a Soparia, no Polo Pina, quando o manguebeat estava sendo arquitetado por Fred, Science & cia. A música da Soparia a princípio eram chorinhos, tocados pelo grupo de Walmir Chagas, mas logo seria o ponto de encontro de toda uma geração. Foi na Soparia onde Roger conheceu Chico Science: "Paulo André fez lá na Sopa a primeira reunião do Abril Pro Rock e Chico veio com Farfan. Fiz logo depois do Abril um show com eles, o Som do Mangue no Pina, com Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi. E aí ficamos amigos. Mas sempre digo que era uma amizade mais ligada por laços estéticos, porque a gente se via mais nos bares. Chico gostava, por exemplo, das minhas fantasias de Carnaval. Foi no Carnaval, numa Soparia que armei em Olinda, que ele chegou e contou que estava fazendo uma música com meu nome. Disse que achei arretado, porque assim ia pegar todas as mulheres, devia até pagar royalties a ele. Pelo contrário, a música tocou muito, e até hoje neguinho me para na rua, mala quer conversar comigo, e mulher que é bom, nada. Ele é quem devia ter me pago", brinca. A música em questão é Macô, gravada em dueto com Gilberto Gil, no Afrocibederlia, e cantada no Abril Pro Rock de 1996. O rosto de Roger fantasiado de flor está estampado no encarte.

"Chico para mim é uma lembrança forte. Eu ligo, por exemplo, o último show dele no Recife, no Clube Português, com o nascimento do meu filho que aconteceu na mesma ocasião", diz Roger, lembrando que quando Chico e a banda voltaram da primeira viagem ao exterior, aos Estados Unidos, ele havia comprado um Landau: "Chico pirou com o carro e comprou um igual. O meu era mais conservado. Em compensação, o dele tinha acessórios, som, luzes, que valiam mais do que o carro. Ele gostava do Landau porque lhe lembrava os carrões daqueles negões americanos do Brooklyn".

Discreto, calado, mas maquinando ideias o tempo inteiro. Este é o rápido perfil de H.D Mabuse. O cérebro eletrônico do manguebeat. A antena podia estar enterrada na lama, mas os bits e chips eram fornecidos por ele. Mabuse morou com Chico Science e Fred Zeroquatro no Edifício Capibaribe na rua da Aurora. Quando os mangueboys diziam que tinham interesse por, entre outros, teoria do caos, esta era uma influência direta de Mabuse: "Naquele tempo eu vivia lendo sobre a teoria do caos, o título do Da lama ao caos deve ter vindo destas leituras minhas, que compartilhava com o pessoal", diz Mabuse. Quando ele conheceu Chico Science na rádio universitária, onde Renato L e Zeroquatro apresentavam o programa Décadas, descobriu que ambos moravam em Olinda: "Ele em Rio Doce, eu em casa Caiada. Começamos a nos visitar, trocar ideias e surgiu o Bom Tom Rádio, um grupo experimental formado por mim no baixo, Jorge du Peixe na bateria eletrônica e Chico nos vocais. Outros caras tocaram com a gente, Fabinho da Eddie, Spider. Fizemos shows, mas não gravamos disco. Tem alguma coisa por aí feita em cassete. A cidade, por exemplo, era do repertório do Bom Tom Rádio. Nele, usei pela primeira um computador, mas muito primitivo, anterior ao 286, nem tinha HD. Mas trouxe para gente esta ideia de que computador é apenas uma caixa, quem manipula ele é que faz as coisas acontecerem", diz Mabuse.

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